MENU
PTEN
Trienal de Arquitectura de Lisboa

Sobre o tempo

Data
20 ABR 2024 - 06 MAI 2024
Edição
2.ª
Participantes
Johanna Musch, Tatuli Japoshvili e Giga Tsikarishvili
Co-Produção
LINA, Europa Criativa

Observações sobre estratégias de cuidado urgentes recolhidas pela Europa

Por Johanna Musch

Em Abril de 2024, Johanna Musch iniciou o Periple Duet, uma residência em viagem por toda a Europa, cuja única directriz era usar qualquer meio de transporte, excepto o avião. A convite da Trienal de Arquitectura de Lisboa, esta viagem levou-a às cidades de Bordéus, Barcelona, Madrid, Lisboa, Estugarda e Krvavica, e a conhecer "testemunhas do cuidado" pessoas que, dentro da sua prática diária (pessoal ou profissional), executam "medidas de cuidado a longo prazo". Este artigo é uma compilação das suas observações e das conversas que teve ao longo do caminho.

No seu ensaio ‘Velocidade e Política’, o filósofo e urbanista Paul Virilio foi um dos primeiros a traçar um paralelo entre velocidade e domínio sobre o que é mais lento. Vários anos depois, Hartmut Rosa explora o conceito de velocidade, desta vez através da lente da aceleração. Para Rosa, a sociedade moderna tem testemunhado um ritmo de vida crescente, interrompendo as nossas estruturas temporais tradicionais e criando uma sensação de instabilidade.

Novas ameaças, longo caminho de cura


Com o Antropoceno, essa instabilidade vai além das sociedades humanas e passa a alterar a superfície, o clima e os ecossistemas da Terra, levando a um novo regime de incertezas.

Nos últimos anos, as alterações climáticas e as actividades humanas aumentaram tremendamente eventos dramáticos como mega-incêndios ou desertificação.

Em Julho de 2022, 12 500 acres (aproximadamente 9000 campos de futebol) de floresta em Landes, no sul de Bordéus (sudoeste da França), desapareceram em mega-incêndios sem precedentes após ondas de calor severas, seca e má gestão florestal. A Floresta de Landes é uma das maiores florestas artificiais europeias. Composta por pinheiros-bravos, foi plantada no século XVIII para drenar terrenos pantanosos. Muito produtiva em termos de produção de madeira, a Floresta de Landes é uma verdadeira caixa de fósforos:

  • Fundada em turfeiras, algumas parcelas ainda estão a arder no subsolo quase dois anos após o mega-incêndio, os chamados "incêndios zombie";
     
  • Os pinheiros contêm alto teor de resina, que é extremamente inflamável, e as suas agulhas podem contribuir para a propagação do fogo através do dossel florestal.

Como as florestas e as paisagens naturais em geral fazem parte do nosso património visual e são frequentemente tidas como selvagens, a opinião pública tende a recusar qualquer intervenção humana, como sublinhado por Eric Paillassa, silvicultor de Bordéus:

"A tendência a que estamos a assistir agora é que as pessoas não querem cortar mais árvores. As árvores também não duram para sempre, há tempestades, e elas caem depois de algum tempo porque o sistema radicular envelhece. Nos anos 80, havia parques na Bretanha com árvores de várias centenas de anos. Não lhes tocámos porque eram as maiores e mais bonitas. Mas com a tempestade de 1987, todas caíram. Portanto, é um erro querer preservar um património de árvores sob uma redoma e impedir que uma nova geração floresça. Quando os silvicultores têm árvores velhas, precisam de se preparar para o futuro, começando a substituí-las pelas mais jovens. É como a população humana, não se pode confiar apenas nos mais velhos para manter a sociedade a funcionar.”

A Floresta de Landes não é a única paisagem que enfrenta a aceleração das alterações climáticas e os seus efeitos. As áreas rurais espanholas também são fortemente afectadas.

Com 50,5 milhões de acres de terra, 20,6 milhões de acres são de área cultivada na Espanha. De acordo com a ONU, até 74% do território espanhol está em risco de desertificação devido às secas contínuas e à exploração excessiva da terra. Ao longo dos anos, o solo foi-se degradado, levando a erosão: a água e a matéria orgânica já não são retidas. Em Fevereiro de 2024, a Catalunha declarou a sua primeira emergência de seca, estabelecendo algumas medidas para os seus habitantes, mas não para a sua indústria turística.

“Devido à seca e às restrições hídricas, não podemos regar a nossa horta comunitária. No entanto, há lençóis a ser lavados todos os dias em todos os hotéis da cidade.” explica Clément Rames, co-fundador da aquí, cooperativa de investigação e práticas urbanas com sede em Barcelona.

Enquanto a habitabilidade do país está em jogo, a sustentabilidade do modelo de turismo de massas e a indústria agrícola intensiva estão no centro dos esforços de Espanha. Num ambiente altamente antropizado como as Florestas de Landes ou terras espanholas em processo de desertificação, a flora evolui lentamente.

Dois anos após os mega-incêndios, espécies pioneiras como fetos e musgos já estão a tomar o controlo dos troncos de árvores calcinadas enquanto o futuro da flora espanhola ainda é incerto.

“A natureza encontra sempre uma forma de se regenerar, se lhe dermos tempo. Mesmo assim, o que se está a perder aqui é a sua capacidade produtiva”, afirma Eric Paillassa.

A sua observação chama a atenção para a nossa visão da natureza como um recurso produtivo abundante para os seres humanos e para nos afastarmos da nossa lógica extractivista.

Colagem ilustrativa © Inês Santos

Podemos ou devemos consertar?

Desenvolvida pelo investigador francês Alexandre Monnin, a noção de "bens comuns negativos" refere-se a ""recursos", materiais ou imateriais, que são "negativos", seja visivelmente, como resíduos, centrais nucleares abandonadas, solos poluídos ou alguns legados culturais tóxicos ou contestados, ou menos visivelmente e de forma mais ambígua (alguns modelos económicos e de gestão, cadeias de fornecimento, TIC, etc.)”. Monnin coloca a questão fundamental de como nós, colectivamente, cuidamos desses resíduos do Antropoceno que herdámos. Podemos reparar, restaurar e regenerar o nosso ambiente danificado? Para além dos legados indesejáveis, surge a questão da nossa relação com o património construído (desejável).

"Quando se trata de património, ainda não decidi o que penso porque, em última análise, a arquitectura também é uma actividade muito funcional. Então, se não serve um propósito, devemos mantê-lo? É difícil dizer por que motivo devemos, ou se devemos. Quando os edifícios são demolidos, há uma espécie de expressão natural de nostalgia. Hoje saiu uma notícia de que o famoso actor de Hollywood Chris Pratt, casado com a filha do Sr. Schwarzenegger, comprou uma bela casa de Craig Ellwood em Los Angeles apenas para demoli-la. A casa era uma maravilha do design moderno, e emocionalmente pensamos "isto é horrível, o que aconteceu?". Mas então porque pensamos dessa maneira? Porque é que estamos tão apegados a um ambiente construído, onde noutros campos não temos problema algum em deitar fora um telemóvel depois de alguns anos, se ele estiver obsoleto? Em certas circunstâncias, o património pode ser muito conservador e muito prejudicial ao processo", argumenta Fabrizio Gallanti, arquitecto e diretor do arc en rêve, centro de arquitetura em Bordéus.

"Os arquitectos e os decisores devem reconsiderar a abordagem convencional à preservação do património. Em vez de conservar edifícios em condições ideais, estes devem ser reaproveitados e renovados para melhorar as condições de vida das famílias e comunidades. (…) Ao abraçar a renovação e a reutilização, podemos criar espaços mais sustentáveis e funcionais, preservando o nosso património cultural", continua Fabrizio Gallanti.

Enquanto o restauro surge como a medida final de cuidado, o reaproveitamento, a reciclagem e a reutilização identificam-se como alternativas fortes, ao mesmo tempo que reconhecemos as nossas limitações ao nível de recursos materiais. Historicamente, era muito comum, até mesmo sagrado, reaproveitar materiais de construção para os usos domésticos da época. A arquitetura medieval em Roma é o exemplo perfeito da espoliação e reutilização de materiais da antiguidade tardia.

Ode à manutenção e adaptações lo-fi

As medidas de cuidado para com o ambiente construído e os seus ocupantes podem tomar formas mais discretas. Reaproveitar um objeto ou uma casa inteira pode ser necessário quando os sentidos e capacidades dos habitantes começam a ficar afectados. Os países do sul da Europa, incluindo Itália, Portugal, Grécia e Espanha, estão entre aqueles com a população mais idosa da Europa. E Portugal torna-se o país com o envelhecimento mais rápido da UE, com 182 idosos (com idade igual ou superior a 65 anos) para cada 100 jovens (com idade até 14 anos). Com uma crise habitacional galopante, os idosos tendem a ficar em casas e apartamentos inadequados às suas novas necessidades, resultando em baixa mobilidade e isolamento.

Arminda, com mais de 80 anos, não sai de casa há anos, afirma a sua cuidadora, Rute. Com muito medo de cair, evita as ruas íngremes da Graça, o seu bairro em Lisboa. Com a ajuda de um empreiteiro, Rute adaptou modestamente o apartamento de Arminda para incentivar a sua mobilidade: um corrimão no corredor feito com um varão de cortinado, vários pontos de apoio na casa de banho...

Essas adaptações lo-fi contribuem para manter a habitabilidade de um espaço devido às necessidades recentes dos seus moradores e desafiam a ideia de espaços de "uso único". No seu ensaio “Le soin des choses: Politiques de la maintenance” [O cuidado das coisas: políticas de manutenção], os sociólogos Jérôme Denis e David Pontille convidam-nos a mudar a nossa perspectiva sobre a manutenção e sobre aqueles que a executam na linha da frente. No centro do conceito de manutenção, dá-se atenção a como podemos cuidar do nosso ambiente material para que ele continue a ser útil a longo prazo e para que se possa adaptar ao nosso estilo de vida em constante mudança.

Regeneração de “climas de cuidado”

Restaurar a nossa relação com o mundo material implica considerar como tomamos as nossas medidas de cuidado. As medidas de cuidado com os bens comuns criados pelo homem podem ser redirecionadas para o bem-estar da comunidade e do meio ambiente - identificando e compreendendo as potenciais vulnerabilidades dos bens comuns - em vez de conservá-los artificialmente a todo o custo:

"Muitos dos museus com visão de futuro estão a ter problemas com esta ideia de como cuidar de coleções. Cuidar já não é manter algo o mais intocado possível, atrás de um vidro e com a temperatura controlada para sempre, para que alguém daqui a dois mil anos possa ter exactamente a mesma experiência aborrecida de olhar para uma caixa de vidro e ler o texto na parede", sugere Laura Osorio Sunnucks, Chefe de Investigação e Colecção do Linden Museum, Estugarda, Alemanha.

Ao ampliar a nossa compreensão do que o "cuidado" pode ser e redefinir o papel das comunidades nessas medidas, podemos renegociar os termos para cultivar "climas de cuidado". Definido pela filósofa Cynthia Fleury e pelo designer Antoine Fenoglio, o "clima de cuidado" consolida os bens comuns necessários para uma "vida boa".

Na era do Antropoceno, essa consolidação pode envolver a reparação de bens comuns alterados, levando a um investimento em esforços demorados de cuidados:

"O que tentamos fazer sempre não é apenas construir uma comunidade, mas sustentá-la - e essa é realmente a parte mais difícil. Construir uma comunidade exige muito esforço, mas como se sustenta, como se nutre e cultiva para que continue a dar frutos? Tem sido um desafio, mas também é algo de que nos orgulhamos. (…) Com a ‘massa caliente’ da CALOR, há pessoas que estão a reunir-se à volta de uma identidade distinta, mas com a mesma afinidade com os impactos das alterações climáticas na nossa cidade e assim por diante. Essa realidade repartida unia pessoas que partilhavam esse propósito e se mantinham agrupadas para liderar ações em conjunto. (...) Está a levar tanto tempo, cuidado e confiança a construir. Mas achamos que é apenas por dar tempo a esse processo muito natural que podemos chegar a um resultado positivo.” Clément Rames e Léa Karrasch, co-fundadores da aquí, cooperativa de investigação e prática urbana com sede em Barcelona.

Aqui, o tempo é uma métrica fundamental e comum a considerar. Embora o direito ao descanso seja reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o capitalismo tardio e o neoliberalismo desafiam-no constantemente, levando a uma "sociedade do burnout" conforme conceptualizado pelo filósofo Byung-Chul Han. Nesse contexto, adotar o comboio como modo de viajar pela Europa ou dormir uma sesta no parque aparece como um acto de resistência: escolher deliberadamente a lentidão, confiando nas virtudes do tédio e da ociosidade.

Em toda a Europa, grupos informais ou organizados surgem com um conjunto de novas e jubilantes estratégias de cuidado, incluindo a reconexão com o mundo natural, o reconhecimento das interdependências, a introdução de novas temporalidades e ritmos num sistema de pensamento de longo prazo ou a revitalização do poder de parentesco entre os seres humanos.

"Quem se importa?" gritou Ana Dana Beroš, arquitecta e curadora, como parte de um exercício performativo na escola pré-verão Arquitectura da Cura em Krvavica, Croácia, e a resposta pode ser "na verdade, mais pessoas do que se pensa".

“Healing is a process that occurs over time, it is not a sudden discrete event”




1. Fonte: https://op.europa.eu/webpub/eca/special-reports/desertification-33-2018/en/
2. Fonte: https://strategy-design-anthropocene.org/fr/actualities-publications/traduction-negative-commons
3. Fonte: https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Ageing_Europe_-_statistics_on_population_developments
4. Fonte: https://www.business-standard.com/article/international/portugal-becomes-fastest-aging-country-in-european-union-reveals-study-122082200042_1.html
5. Fleury-Perkins, Cynthia, e Antoine Fenoglio. "Ce qui ne peut être volé: charte du Verstohlen". (2022).
6. Han, Byung-Chul. The burnout society. Stanford University Press, 2015.