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Trienal de Arquitectura de Lisboa

Entre Exaustão e Cura - Parte IV

Data
20 ABR 2024 - 06 MAI 2024
Edição
2.ª
Participantes
Johanna Musch, wit[h]nessing (Tatuli Japoshvili e Giga Tsikarishvili)
Co-Produção
LINA, Europa Criativa

Fabulações Especulativas: Faro-Lisboa
by wit[h]nessing


Faro - À deriva

Sabem o que está por detrás das refeições de marisco que se comem nos restaurantes? A vida dos pobres”.

Aroma a sal e algas marinhas enchem o ar à medida que o ferry chega às águas rasas do golfo. O grupo desembarca com o equipamento necessário para começar o trabalho de campo que é suposto estudar a vida vegetal local que se desenvolve sob a superfície. O Sr. X, instrutor, já está em terra a ajeitar o chapéu enquanto se prepara para dar entrevista a uma revista local.
   “Oh, sim, obrigado”, diz, ao acenar de forma discreta para a equipa da publicação.
  "São estudantes de mestrado em Biologia Marinha da Universidade do Algarve em experiências de incubação de plantas para medir-se fotossíntese. Professores presentes orientam o trabalho de campo.    “Como podem ver, o solo é incrivelmente fértil e suporta um ecossistema altamente produtivo”, acrescenta, ao apontar para a grande lagoa.

A duzentos metros de distância, pessoas ocupam-se da escavação activa de algo que não se distingue ao longe. Intriga-me. “A lagoa estende-se por quase 16 quilómetros”, continua o Sr. X. “Historicamente, esta região manteve-se praticamente intocada pela industrialização. Foi durante muito tempo uma tábua de salvação para a economia local, sustentando actividades de pequena escala durante séculos. Embora exista algum turismo, continua empobrecida e com muitas famílias a dependerem quase exclusivamente dos recursos da lagoa. As ostras, peixe e outras formas de vida destas águas são essenciais para a subsistência das comunidades locais. É assim há gerações”.

Imagem da costa de Faro a partir de um barco

Faro © wit[h]nessing

Uma pessoa mais velha acompanhada por um cão preto chama a atenção quando passam por mim. O homem, envelhecido mas determinado, carrega um balde numa mão e um saco de rede ao ombro, provavelmente prestes a juntar-se ao grupo de pessoas que escavam. O animal segue-o com a calma da lealdade sempre presente. Decido seguir-lhe o rasto a distância segura - a curiosidade atrai-me. Ao fundo, ainda ouço o Sr. X terminar a entrevista com a lenta degradação da lagoa, uma consequência do turismo crescente que ameaça alterar a paisagem.

  “Quando era criança, não havia quase nada aqui”, diz. “Estas casas que se vêem agora foram construídas nos anos 1950 e 1960 mas nessa altura era, sobretudo, terreno aberto. Apesar disso, a lagoa conseguiu manter grande parte da biodiversidade, em grande parte devido ao seu estatuto de proteção. Esta proteção manteve-a a salvo da pesca industrial e de outras ameaças importantes. As restrições permitiram que as pequenas aldeias piscatórias mantivessem as suas actividades tradicionais sem esgotar os recursos. Para estas comunidades, a lagoa é mais do que uma simples fonte de alimento - é a base do modo de vida.”

Muito bem, Sr. X”, pensei para mim, já a trilhar um caminho em direção ao idoso e fiel companheiro, com a minha mente cheia de pensamentos sobre a sociedade em relação a estes profissionais. À medida que me aproximava, tornou-se claro que eram atraídos pela rica abundância de amêijoas que pareciam povoar a área, todas curvadas em busca da sua presa, deixando um padrão de marcas na extensão lamacenta. Ao sintonizar-se com a minha presença - talvez mais ainda com o seu cão - começa a olhar para trás repetidamente. O cão, actuando como uma extensão da sua consciência, serve-lhe de visão para trás. A minha atenção não parece perturbar; quando muito, sinto que acolhem a companhia, talvez até a antecipem. 

Quanto mais me aproximo, mais palpável se torna a ligação não dita entre nós. O corpo nodoso da pessoa idosa, o pescoço e os braços marcados por sulcos profundos e escuros, fala de idade e de histórias por contar. Pelos movimentos do cão, vejo que conhece intimamente quem segue e o seu carácter. A cada passo, que se transforma numa compreensão silenciosa, a ligação entre nós cresce e cresce. A distância que antes nos separava parece dissolver-se. Agora uma silhueta vaga na névoa que se funde, vira a cabeça para trás. O seu gesto, embora aparentemente casual, tem um significado subjacente. A sua voz, suave mas ecoante, diz: 
   “Cuidado com a quantidade de olhos que te observam aqui.” 

Faro © wit[h]nessing

O seu olhar recai sobre o solo à minha frente, um terreno marcado por inúmeros buracos dispostos em grelha. A paisagem transforma-se num padrão enigmático, criado por quem a existência e hábitos são desconhecidos para mim. Cada buraco, um pequeno abismo, sugere um potencial mundo subterrâneo abaixo. A própria terra parece quase senciente. As palavras do homem pairam no ar, tornando-me extremamente consciente da miríade de olhares, reais e imaginários, que podem estar a observar todos os meus movimentos nesta extensão peculiar e perfurada. 

"Fica sempre alguma coisa para trás”, diz com um sorriso, parando para mexer num objecto parecido com uma caixa. Parece ser do tipo que não usa muitas palavras e soa sempre comedido e deliberado. Olhando para ele, e sem saber o que dizer, penso que cada momento deixa uma marca, quer se dê por isso ou não. Ele começa a andar. Eu sigo. Entramos num bairro de casas de praia de um e dois andares, lado a lado, numa explosão de cores pastel. Os seus jardins transbordam de cães amigáveis aqui e ali, plantas exuberantes e pedaços de areia. O sol está alto. Consigo manter o ritmo durante algum tempo, mas rapidamente perco de vista a dupla, talvez com a distração com o som distante das ondas e pelo zumbido baixo das conversas. Gradualmente, o caminho estreito entre duas casas torna-se arenoso.

O ar e as vozes à minha volta tornam-se mais claros, mais transparentes. A areia aprofunda-se sob os meus pés. À medida que avanço, uma praia dourada repleta de pessoas em férias pagas, ou talvez não pagas, desenrola-se à minha frente. Em contraste com a extensão tranquila, mas irregular, da lagoa, esta praia é imaculada, polida e organizada. Sentindo uma pontada de fome, dirijo-me a um dos restaurantes ao longo da praia. Olho para o menu sem parar, tentando decidir o que pedir. Acho que não vou conseguir. Finalmente, alguém se aproxima a sorrir e pergunta-me se preciso de ajuda.

   “O que é que posso comer?” pergunto, perdido nos meus pensamentos.
    "O prato mais conhecido são as amêijoas acabadas de apanhar, como lhes chamamos em português. Queres provar? Talvez acompanhadas de um vinho seco, meio encorpado e crocante?”
A pergunta paira no ar, simples mas complicada, e dou por mim incapaz de responder. “Como é que posso voltar?” Pergunto-me, ansiando por voltar a ligar-me ao que o homem e o cão me mostraram.         “Como é que posso deixar tudo isto para trás?” 

Em cima, três cegonhas pousam em serena quietude num poste de electricidade - tranquilas, graves e sábias. Sentam-se na encruzilhada entre a agitação consumista da praia e o mundo calmo e distante da lagoa. Não consigo afastar a estranha sensação de que estas pessoas têm as respostas que procuro, que me podem guiar, mesmo no seu silêncio.
   “Desculpe?”
   “Sim, desculpe...” Respondo, ainda incapaz de olhar para a pessoa.

Lisboa - A cidade invisível

Quero ir embora mas não consigo. Todas as manhãs, acordo e digo: “Hoje é o dia” mas de alguma forma não consigo. Esta cidade, com as suas subidas e descidas incessantes, edifícios tão altos e estreitos que parecem poder cair não me agrada. Ressinto José de Sampaio - um homem de influência e riqueza que fabrica eléctricos coloridos, facilitando a deslocação das pessoas para cima e para baixo, para cima e para baixo, para cima e para baixo. Ressinto a fábrica na Rua do Mirante com apenas três janelas alinhadas na horizontal mas que se eleva a uma altura de 30 andares. 

Ressinto o exterior, coberto de azulejos coloridos que parecem idênticos mas que são estranhamente diferentes quando olhados de perto. Ressinto-me de como o fardo de manter as aparências pesa sobre ele. Ressinto a pureza dos jacarandás que plantou em toda a rua há anos, sementes e mudas de quem fez expedições sistemáticas na América do Sul. Ressinto a forma como o bairro se transforma num mar de púrpura em cada fim de verão. Ofende-me que ele ainda guarde as mudas no tecto do prédio, como um paranoico. Uma vez disse que temia que se extinguissem, essa aberração! Se ao menos eu pudesse fazer o que me apetece e acabar com isso.

Vim para Lisboa de um sítio congelado nas memórias difusas da minha infância. No entanto, lembro-me claramente da minha mãe e de mim a chegar de barco numa noite quente ao amanhecer. Devia ter sete anos. Desde essa noite, muitas madrugadas quentes se sucederam, e cada vez tenho mais medo de esquecer o barco, a noite, o calor, a madrugada e a minha mãe. Impulsionado por este medo, esculpo barcos em todas as fachadas a que consigo deitar a mão - ornamentos em estuque, azulejos, tudo. Assim, aquele barco, aquela noite, aquele calor, aquela madrugada e a minha mãe ficam comigo. Tenho medo de ter medo. Aqui, o sexo é proibido e seria castigado. Quase sempre, só acontece sob a temida cacofonia dos sinos da catedral que batem duas vezes a hora. A uma hora destas, à tarde, estou na varanda de um hotel na Calçada do Monte.

Lisboa © wit[h]nessing

Olhando a cidade de cima, vejo estátuas brancas de santos esquecidos, silenciosos. O dono do hotel encarregou-me de criar esculturas em pequena escala. Trabalho aqui, mas estou proibido de tocar nos espelhos que revestem todas as paredes. É uma regra inegociável. Está bem, vou olhar para eles, uma e outra vez, penso eu. Mas não, tenho de lhes tocar, e toco. 

Deparo-me com o olhar de uma criatura desconhecida, primeiro no espelho fragmentado da porta do quarto, depois nos espelhos longos e estreitos do armário. Embora pareça um esquilo, é diferente de todos os esquilos que já vi. A sua cauda grande e fofa passa de preta na ponta a cinzenta e finalmente a branca na base, com riscas vermelhas por todo o corpo. Enquanto olho atentamente, os olhos da criatura fixam-se nos meus durante alguns segundos, antes de sair de vista com tal velocidade que desaparece instantaneamente. O espelho revela um vasto campo verde com árvores imensas que se erguem da terra, insectos a zumbir e a rastejar. 

As árvores não são apenas naturais; parecem quase arquitectónicas, como estruturas imponentes de uma cidade. Os seus troncos são largos e com padrões intrincados, revestidos de uma manta de retalhos caótica de texturas e cores terrosas. Cogumelos enormes brotam desordenadamente dos seus ramos - como torres ou cúpulas elaboradas. Que contraste com o mundo ordenado e refletido em que vivo?! Nunca acreditei na existência do universo dos espelhos, mas aqui estou eu, perante algo que mal reconheço.

Todo verão, quando os Jacarandás florescem, eu penso no verão em que os Jacarandás não floresceram. O verão em que os Jacarandás não floresceram foi o verão em que minha mãe e eu chegamos de barco numa noite quente de madrugada. E se o que escrevi aqui não for um reflexo directo dos meus pensamentos, mas a imagem do espelho? E se eu não estiver ressentido com Lisboa?