Entre Exaustão e Cura - Parte II
Fabulações Especulativas: Tessalónica - Tirana
by wit[h]nessing
Tessalónica: Viajante Ciborgue
À meia-noite, a visão fica turva. A iluminação no exterior do autocarro diminui, criando longas sombras e delicados jogos de luzes. O mapa no telemóvel reflete o meu movimento. Transfiro imagens, nomes e locais da aplicação para o cenário embaçado visto pela janela. O meu olho treme. O som do autocarro é brando ao atravessar a noite. Os meus olhos ciborgues, com bons infravermelhos para baixa luminosidade, ajustam-se automaticamente ao ambiente escuro, capturando as fugazes sombras e luzes. Os meus membros ampliados, perfeitamente integrados à minha forma orgânica, gemem levemente - um lembrete da minha dupla existência. Por força da natureza e do hábito e da aprendizagem, o meu corpo prende-se a um local específico no universo. No planeta Terra, num território chamado Grécia, perto de uma cidade cujo nome desconheço. Contemplando esse peculiar alinhamento: o ‘eu’ que tenta ancorar-se a lugares reais e o ‘eu’ que deambula por mapas e coordenadas, enlaçado, mas sem vínculos. Não há oferta estável por trás de nenhum ‘eu’. O autocarro segue pela noite, conectando pontos em diferentes geografias que cintilam brevemente na consciência antes de desaparecerem na escuridão. Fecho os olhos. Tudo se torna preto com flashes e brilhos de vermelho, azul e amarelo. As palmas das mãos estão a suar e frias.
Um sobressalto inesperado desperta-me. Os sensores ópticos ajustam-se ao raio de luz solar que atravessa a janela, o calor sentido mesmo através da minha pele sintética. Detesto agentes de mediação entre mim e o Sol. Afinal, estamos em Tessalónica, diz o motorista, com uma voz firme, apesar das longas horas de estrada. Forma-se uma conexão entre nós naquele autocarro vazio. Encho-me de coragem. Pego na minha mochila e meto conversa.
- “Bela manhã em Tessalónica, gostava de poder ficar mais tempo.”
- “O que o traz aqui?”
- “Trabalho, nada de especial. O senhor é daqui?"
- “Sim, e você?”
- “Eu sou da Geórgia, uma pequena cidade perto da capital.”
- “Ah, a minha mãe era de Sokhumi...”
E eu penso em qual seria a probabilidade de ouvir o nome de uma região tão disputada, um estado parcialmente reconhecido da Geórgia? Ele continua, descrevendo como a comunidade grega da Geórgia retornou à Grécia após a independência e como conhece habitantes locais que vivem aqui. Não estou pronto para esta discussão.
- “Como está a vida na Grécia agora?”, pergunto.
- “Para ser sincero, meu amigo, a Grécia está a morrer. Encontrou-se recursos naturais no subsolo e tornou-se uma colónia dos EUA, Grã-Bretanha e Alemanha. Ficam com todo o dinheiro, nós não temos quaisquer benefícios. Pode olhar em torno e pensar, ah, todas essas praias ensolaradas, mas é tudo uma farsa. O nosso Governo não se importa com o povo grego nem com nossa natureza."
Quero convidá-lo para um café matinal, mas há algo que me impede de o fazer, como geralmente acontece quando não se tem certeza de qual o limite entre eu e o outro. Murmuro algumas palavras sobre o tipo de caos que meu país também vive - o facto de estar só, vulnerável e solitário. Desejamos sorte um ao outro e eu parto para a cidade, misturando-me facilmente com o mundo orgânico e urbano.
Periple Duet 2024, Tessalónica © wit[h]nessing
Tirana: O Inesperado
Ao cruzar a fronteira entre a Grécia e a Albânia, uma subtil mudança na paisagem sinaliza a entrada num mundo menos domesticado. As colinas onduladas e as árvores dispersas simbolizam um lugar que ainda mantém a natureza selvagem. Perto da fronteira, um café chamado “Relax” surge numa posição absurda, um fragmento de conforto capitalista no cenário rústico. Ali está a possibilidade de um breve descanso à fadiga de viajantes, um convite à pausa para saborear um momento de calma. Um motociclista, ao lado do parceiro, está ao lado da sua mota, mesmo em frente ao café. Um cão lambe a água de uma poça na estrada. A simplicidade desses actos contrasta com a complexidade das necessidades sem adornos da vida. É assim que, às vezes, a jornada para além dos limites começa - encontrando nomes, sinais, coordenadas, imagens e sons distintos. Prestar atenção às condições ocultas pode trazer mais do que apenas rotas, fronteiras e soluções conhecidas - mais do que apenas os esperados resultados. Que traga palavras que ainda não conhecemos e espaços que ainda não habitamos.
Continuamos durante mais cem quilómetros até chegarmos a Tirana, onde eu e o restante grupo fomos recebidos por uma inesperada agitação. Cada membro do nosso grupo, exalando um ar de consciência calculada, mistura-se perfeitamente na multidão. Trocamos acenos breves e gestos coreografados com a precisão da prática. Apesar da aparência externa, um senso de propósito distingue-nos dos turistas casuais. Enquanto vagueamos pelo caos eufórico da cidade, os sentidos permanecem atentos aos detalhes mais delicados, em alerta para qualquer sinal de perigo ou potencial oportunidade.
O pulso vigoroso da cidade, as ruas vibram com o ritmo da vida quotidiana. Traços da história estão gravados no tecido urbano, lembranças profundas e nítidas de um passado que foi tudo menos gentil. A arquitectura narra uma história de resiliência e reinvenção, com camadas muito visíveis de distintas épocas. Os edifícios contrastam muito entre si, estruturas modernas misturam-se com resquícios de uma era passada, como se quem trabalha em arquitectura se tivesse reunido aqui para deixar uma marca pessoal.
As câmaras de vigilância são onipresentes. Contudo, é irónico que pagamentos digitais sejam escassos. A pessoa que conduz o autocarro opera com traquejo ao distribuir bilhetes que parecem ser vintage, fazer transações em dinheiro e imprimindo bilhetes no momento. Essa peculiaridade é atraente, de uma forma inesperada - um ritual que liga o presente ao passado, recusando-se a permitir que se esqueça o elemento humano nas transações mecanizadas.
Navegando pelo bairro repleto de vários prédios de Governos estrangeiros, incluindo a Embaixada da Palestina, aninhada entre a alemã e a britânica, encontramos a estrada para o nosso alojamento obstruída. Os percursos do Google Maps não são precisos e mostram limites que não podemos cruzar. A casa vazia tem um pormenor curioso: um monitor de câmara em cada quarto. A janela para o mundo exterior é estranhamente reconfortante, um guardião silencioso que vigia a rua tranquila.
Enquanto me instalo, reparo que os móveis escassos do quarto sugerem uma abordagem utilitária ao conforto. As camas, apesar de simples, são feitas de forma meticulosa, com lençóis limpos que sugerem uma atenção cuidada aos detalhes por parte dos nossos anfitriões invisíveis. Uma pequena secretária de madeira no canto tem um conjunto de jornais locais desatualizados e uma lâmpada solitária, cuja luz fraca projeta sombras longas e curvas que dançam pelas paredes.
A nossa missão, embora não seja dita, está sempre presente. Ao cair da noite, preparo-me para as tarefas que temos pela frente, sabendo que cada momento de descanso é um prelúdio do que o amanhã trará.
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