Recensão crítica sobre os ebooks por Luís Santiago Baptista
Expansão crítica de um objecto ausente
A Trienal de Arquitectura de Lisboa publica agora três dos seis ebooks previstos no plano de publicações de Close Closer. Estes lançamentos envolvem para já três das quatro exposições centrais da 3ª edição da Trienal realizada em 2013. Com significativo atraso, as exposições Futuro Perfeito, realizada no Museu da Electricidade, A Realidade e Outras Ficções, mostrada na Carpe Diem, e Fórum Novos Públicos, centrada no Palco Cívico na Praça da Figueira em Lisboa, ganham agora substancial material de reflexão. Aguarda-se ainda com expectativa a publicação correspondente à exposição O Efeito Instituto. Mas uma questão emerge inevitavelmente: faz sentido publicar estes ebooks passados meses do fecho das respectivas exposições?
Após leitura destes pequenos livros agora lançados diríamos inequivocamente que sim. De facto, desde o início que a curadora geral Beatrice Galilee não tinha pensado estas publicações como meros catálogos das exposições. Como refere, estes são concebidos para “investigar e desenvolver mais profundamente a nossa posição curatorial, apresentando muitas arquitecturas em oposição e coexistência”. Não era então a simples transposição dos conteúdos das exposições para livro que estava na base da ideia destes ebooks. A intenção passaria antes por estas publicações funcionarem como instrumentos de abertura crítica das questões trabalhadas pelos diferentes curadores em cada exposição. Neste sentido, os livros revelam uma relativa autonomia que parece justificar a sua publicação posterior. O que não é o mesmo que dizer que o seu lançamento simultâneo com as exposições não tivesse na altura um efeito exponenciador que entretanto se perdeu. Alguns equívocos patentes na recepção crítica de Close Closer poderiam eventualmente ter sido evitados. Mas mais do que lamentar a sua publicação tardia há que evidenciar a satisfação que nos é dada ao poder agora lê-los.
Se o conceito curatorial por trás destes ebooks é como vimos desafiante, a sua concretização não o é menos. De uma ideia comum, bem expressa através de um eficaz design gráfico unificador, nascem porém três publicações bastantes diferenciadas em termos de abordagem e conteúdo. A abertura inerente ao conceito editorial deu liberdade a cada curador para construir a sua publicação com uma relação mais próxima com as especificidades de cada exposição. Existe portanto uma feliz adaptação do modelo à singularidade das abordagens curatoriais. Se a dimensão experimental e activista de Close Closer atravessa, com diferentes graus, todas as publicações, existem diferenças significativas entre elas. E estas revelam-se na maior proximidade ou distância às exposições, no teor mais especulativo ou reflexivo dos conteúdos, ou mesmo na natureza mais programática ou metodológica das abordagens. Analisemos então caso a caso.
O livro Brave New Now da responsabilidade de Liam Young, curador da exposição Future Perfect, apresenta-nos uma série de short stories sobre um futuro distópico. Nele, um conjunto de “autores são convidados a habitar a cidade”, imaginando cenários e narrativas de um tempo futuro, mais próximo ou distante, enquadrados de forma livre pela exposição. O ensaio introdutório do curador expõe com clareza as intenções do projecto, captando a sua genealogia histórica e o papel da ficção na arquitectura contemporânea. Nas suas palavras, “a ficção é um meio poderoso através do qual partilhamos e discutimos as nossas esperanças, medos e ansiedades acerca dos futuros que queremos ter”. Seguindo a lógica fragmentada da exposição, Brave New Now explora essencialmente o exercício literário especulativo a partir de múltiplas vozes. As narrativas agarram-nos facilmente, envolvendo-nos em atmosferas estranhamente familiares que exploram esse território sedutor entre a ficção e a realidade. A diversidade temática das pequenas histórias é assinalável e a estratégia inesperada de confrontá-las com imagens exteriores de outros criadores e fotógrafos revela-se eficaz e produtiva (não deixa de ser curiosa a coincidência de em duas histórias seguidas sermos confrontados com descrições diferentes mas surpreendentemente próximas de uma operação de quarentena, o que não deixa de revelar algo acerca dos nossos limites no acto de imaginar o futuro). No entanto, apesar dessa diversidade das narrativas, acaba por ressaltar a uniformidade do dispositivo discursivo. Este exerce-se sempre na conjugação da primeira pessoa do singular e assenta em descrições impressionistas da cidade do futuro. Após a leitura do livro, temos a sensação de que a singularidade dos pontos de vista é, num certo sentido, normalizada pelas estratégias literárias, quase como se estivéssemos na presença de um único autor. É por isso que a publicação Brave New Now será aquela em que se sente mais a falta da exposição. O género literário funcionaria nesse caso como um outro meio para expandir os diferentes discursos mais experienciais apresentados na exposição.
A curadora Mariana Pestana coordena o livro The Real and Other Fictions, a partir da exposição homónima. Aqui a publicação apresenta-se essencialmente como um meio de investigação, uma possibilidade de explorar teoricamente os conceitos e estratégias que construíram a exposição. Isto é, “este livro foi organizado como uma preparação da exposição”. Como publicação de um processo com um fim que lhe é exterior, poder-se-ia pensar que após a realização da exposição este perderia o sentido. Mas bem pelo contrário, a publicação deste material revela um interesse que extravasa a exposição, manifestando uma autonomia teórica que todavia ganharia com a experiência prática das intervenções presentes em The Real and Other Fictions . Com grande precisão e economia, a curadora centra essa investigação na ideia de “encenação” (“enactement”), convocando através de ensaios textuais e visuais e entrevistas um leque alargado de interpretações desse termo. Como refere, “em vez de representar o uso na arquitectura, o que a exposição propõe é apresentá-lo, encená-lo”, investigando a “relação entre performance e espaço” e, mais especificamente, a “relação entre re-encenação e prática espacial”. O livro é, no limite, a investigação de como fazê-lo. Sendo uma “colecção de contribuições de diferentes tempos, lugares e campos de investigação académica”, o livro integra perspectivas da literatura, psicanálise, artes performativas, activismo, curadoria e arquitectura, sob a forma de textos originais ou republicados. O resultado final é uma breve mas consistente antologia temática, certamente útil para quem se interessar por estas questões.
O livro The Civic Stage é editado por José Esparza, curador da exposição-evento Fórum Novos Públicos. Este é a mais pequena mas declaradamente mais politica das três publicações. Como salienta, este ebook “pretende ser entendida como um guião através do qual podemos colectivamente levar a cabo uma verdadeira manifestação teatral cívica”. Sendo esta a exposição mais dificilmente transponível para a forma de publicação, tendo em conta a sua dimensão essencialmente performativa e efémera, o livro surpreende pelo salto em frente. Uma configuração editorial inspirada numa peça teatral, organizada em actos, permite compilar diversas contribuições de acentuado teor ideológico e activista. Ao não poder verdadeiramente reflectir o programa expositivo, assume-se como manifesto pela emergência de uma nova consciência política internacional com reflexos significativos na arquitectura. As referências aos movimentos Occupy, à Primavera Árabe e às manifestações contra a Troika em Portugal delimitam criticamente a proposta editorial. Os ensaios gravitam por isso em torno de ideias contestatárias e participativas de espaço público e de acção cívica, sendo ilustrados por belas imagens de referência do Palco Cívico de Frida Escobedo e Hooper Schneider. De certa forma paralelo ao projecto curatorial, The Civic Stage expõe de modo afirmativo o enquadramento ideológico do Fórum Novos Públicos.
Seja como discurso especulativo complementar, seja como investigação teórica estruturante, seja como manifesto performativo contextualizador, estes três livros agora lançados demonstram as potencialidades de pensar a publicação como um projecto curatorial em si mesmo. A pluralidade de respostas editoriais apresentadas revela-o claramente, assumindo o livro um papel activo e crítico nas exposições que compuseram o programa Close Closer expandem discursivamente a sua proposta curatorial mesmo perante a ausência dos seus objectos expositivos.