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PTEN
Trienal de Arquitectura de Lisboa
Data
16 FEV 2025 - 07 ABR 2025
Edição
Participantes
Atelier Remoto + Jacopo Biffi (AlteSfere)

Learning with ghosts: Lucille Leger & Jacques-Marie Ligot

Co-Produção
LINA Community; com o apoio da Europa Criativa, um programa da Comissão Europeia

Aprender com Fantasmas

Periple Duet

A cada ano, a Trienal de Lisboa convida emergentes para conceber e realizar uma residência em movimento que vai integrar o programa “alimentado” por uma rede de agentes culturais membros da plataforma europeia LINA. As viagens são matéria-prima de um exercício de observação: vivenciar a diversidade territorial, reduzir distâncias e alargar limites são elementos-chave destas residências. 


por Learning with Ghosts

O Periple Duet é um convite a viajar de forma diferente — contrariando a urgência do transporte aéreo — e a aceitar outra temporalidade: mais lenta, menos confortável, onde o corpo se torna mais vulnerável. Neste ritmo prolongado, os artistas em residência articulam-se com o território, criam laços com instituições e desenvolvem uma espécie de enquadramento para a viagem, ligando os vários pontos sugeridos. 


Partimos de Paris rumo a Lisboa e, a partir daí, até à Irlanda, iniciando a nossa residência na capital portuguesa. Foi aí que o percurso se transformou no périplo ao longo da costa atlântica - de sul para norte - seguindo as linhas costeiras. Atravessámos Marselha, Madrid, Lisboa até Dublin, sempre junto ao mar, de comboio, autocarro e barco. Este litoral — da costa portuguesa à Galiza, passando pela Bretanha até à Irlanda — forma um espaço marginal que procurámos atravessar e compreender.

Guiados pela nossa investigação Learning with Ghosts (Aprender com Fantasmas), pretendemos compreender como a arquitetura é habitada por espectros simbólicos, portadores de crenças que provêm de formas vernaculares de conhecimento. Estas crenças oferecem uma perceção única dos lugares e edifícios, por vezes contrariando os seus usos institucionais ou, ao contrário, enriquecendo a sua compreensão.

Ao colocar o foco nos fantasmas, relacionamo-nos, através desta viagem, com a história dos dispositivos luminosos e disciplinas ligadas ao invisível — características do final do século XIX. Foi nesta altura que surgiram estudos sobre espectros, bactérias, eletricidade — formas de conhecimento que tentam vincular o invisível ao real. Hoje, queremos estender essa ligação à noção de afeto.

A nossa atenção dirigiu-se para os faróis — ou melhor, para os dispositivos de sinalização marítima: faróis, faróis costeiros, casas de luz, todos testemunhos diretos dessa era. Estruturas técnicas construídas para guiar, controlar e marcar o espaço marítimo, cuja implantação em massa nos séculos XIX e XX acompanhou a transformação das rotas comerciais, a intensificação dos fluxos e as lógicas coloniais de conquista e domínio dos mares. 

Com o apoio da Fundação Irlandesa de Arquitetura e da Architecture at the Edge, a nossa viagem pela costa irlandesa tornou-se uma oportunidade para criar ligações significativas. Encontrámos gestores de faróis, marinheiros, arquitetos e uma comunidade diversa de entusiastas de faróis, que enriqueceram a nossa compreensão destas estruturas como locais funcionais e simbólicos.

Estas arquiteturas são instrumentos — permitem a extensão da presença humana em zonas hostis. Garantem visibilidade e controlo em condições incertas. Neste sentido, participam numa narrativa política e técnica da ocupação de margens, da organização territorial do mundo através do comércio e navegação. Atualmente, com a digitalização da navegação, o seu papel diminuiu, tornando-os património cultural, motivos poéticos ou mesmo monumentos turísticos, cuja função e conservação são frequentemente questionadas nos territórios por onde passámos. Relacionados com dispositivos de observação, os faróis são marcos que se unem a uma multiplicidade de arquiteturas espalhadas por territórios profundamente marcados pelo património marítimo: infraestruturas portuárias, paisagens agrícolas varridas pelo vento, geologias de granito... Todos estes elementos contribuem, de algum modo, para a formação de uma cultura arquitetónica partilhada.

Unidas através da cultura celta, estas costas estão repletas de marcadores visuais: menires, marcos de pedra, e outras estruturas ciclópicas de pedra que encontramos na nossa viagem. Objetos de fascínio, vistos como enigmáticos pelos primeiros habitantes que os viram erguer-se nos territórios isolados, os faróis agora pontuam a vida quotidiana de pessoas que, ao longo do tempo, construíram narrativas e relações pessoais com estes lugares.

Cada farol que encontramos à medida que viajamos — no mar, junto à costa ou cidades — tornou-se ponto de entrada para um estudo mais amplo. Consultámos arquivos (como os dos Commissioners of Irish Lights, em Dublin), analisámos dados meteorológicos e visitámos as próprias estruturas. Tentámos compreender a sua arquitetura, mas também o que implicam: vigiar, manter, esperar, transmitir, antecipar. Rotinas relatadas por quem ali viveu — guardas, utilizadores ou habitantes vizinhos. 

Estas casas da luz podem ser lidas como interfaces entre o corpo humano e sistemas maiores: correntes oceânicas, ciclos climáticos e lunares, tecnologias ópticas, cadeias logísticas.

O que as define não é apenas a arquitetura, mas, sobretudo, o que sinalizam: luz, som, ritmo. São avistadas de longe, de forma intermitente, através do nevoeiro e da escuridão. Orientam tanto quanto inquietam. São, de certo modo, arquiteturas de espectros. Ao explorarmos as condições de vida nos faróis antes da automatização, observámos como impunham alternâncias estritas: dia/noite, vigília/sono, luz/escuridão. Impõem um regime particular de atenção e ponto de vista. Os diários dos guardas — como Armen, de Jean‑Pierre Abraham — mostram como conviver com uma lâmpada exige compromisso físico e mental, uma solidão pontuada pela manutenção da luz. Trabalhar num farol, como a própria vida, consistia em várias tarefas de manutenção que nos recordam a necessidade de cuidar da arquitetura para evitar a sua degradação repentina.

Os faróis parecem fazer a ponte entre dois mundos: um de relação direta com o ambiente, enraizado na experiência e na sensação, marcando atividades económicas e sociais; e outro da organização do mundo moderno, onde a tecnologia se desvincula dos ritmos biológicos humanos e desarticula o tempo. Tecnologias de vigilância, trabalho remoto ou redes sociais são alguns exemplos desta desregulação. A evolução das infraestruturas luminosas nos espaços públicos revela como a nossa relação com o clima e o sono foi reconfigurada para nos manter num estado de vigília constante. Embora os faróis preservem uma ligação à experiência temporal descontínua e não linear — pela ligação às incertezas climáticas —, também expressam uma profunda mutação na organização da atividade humana, através de um sistema cada vez mais mecanizado e arbitrário. Os faróis podem estar entre as primeiras manifestações da capacidade da arquitetura de vencer a escuridão, abrindo um campo de possibilidades para conquistar o tempo, abolir o domínio tácito da noite sobre a atividade humana. 

Como explicita Jonathan Crary no livro 24/7*1, estes sistemas, a que nos habituámos no mundo contemporâneo, condicionam a experiência da variação temporal e rompem o vínculo com as texturas rítmicas e periódicas da vida. Como outros instrumentos óticos do século XIX, os faróis marcam uma transformação da própria subjetividade numa altura em que a figura do observador entrou nos campos estético, científico e filosófico. Esta revolução subtil na cultura visual ocidental acompanhou a emergência da sociedade como a conhecemos hoje, onde os nossos ritmos biológicos foram transformados por tecnologias que impõem uma vigilância constante. A luz do farol diz-nos algo porque o seu ritmo alinha-se de forma clara com a alternância entre o dia e a noite, convidando-nos a reconhecer os nossos próprios ritmos e a repensar a relação necessária entre arquitetura e o seu contexto. 

“Por que razão a visão de uma lâmpada acesa em plena luz do dia provoca um arrepio no coração?”*2
Depois de quase um mês de viagem, demos um workshop público com a Fundação Irlandesa de Arquitetura, em Dublin. Apresentámos um arquivo de calendários perpétuos e diferentes tipos de ferramentas circulares de orientação que recolhemos no caminho. Usando estes objetos circulares como enquadramento, os participantes mapearam as suas rotinas diárias, hobbies e atividades para criar paisagens emocionais — conectando afetos, infraestruturas urbanas e elementos ambientais como o clima.

Deste processo emergiu a ideia de criar um dispositivo resultante da residência: um disco rotativo, um mapa circular, um plano sem centro. Este meio permite sobrepor diferentes tipos de informação, refletindo tanto as preocupações dos faroleiros como as nossas, enquanto pessoas em trânsito.

Estes objetos circulares, que giram infinitamente, contam a história da nossa viagem e investigação de forma não linear, convidando outros a construir a sua própria relação com o léxico dos faróis que desenvolvemos aqui.

Quando giramos a roda, surge uma leitura coreografada do farol — como se os seus planos se transformassem num score de gestos. O objecto inspira-se na arquitetura, nas condições de vida e nos ambientes observados durante a viagem. Tal como uma cebola, ou uma ferramenta de navegação, tem múltiplas camadas por descobrir. Pode tornar-se a ferramenta de uma pessoa para navegar a sua própria e complexa paisagem.

Cada ciclo representa um aspecto da investigação e da viagem:
- Ritmos corporais: sono e sonhos
- Atividades cronometradas do vigia : ciclos de trabalho e descanso
- A impressão do corpo na arquitetura: movimentos induzidos pelo desenho, energia corporal (temperatura, humidade), tarefas de manutenção e atividades quotidianas
- Zonas de radiação de luz e sinal sonoro (buzina de nevoeiro): a relação do farol com a névoa e a noite permite explorar a influência da arquitetura para além da presença material
- A relação simbiótica entre o interior (espaço doméstico/de trabalho) e o exterior
- As atividades dos guardas ligadas a alterações meteorológicas exteriores: vento, marés, ondas, clima, visibilidade, temperatura, humidade...
- Finalmente, um ciclo que funciona como calendário e ilustra a viagem de um mês, que pode depois ser reaproveitado pelos utilizadores deste objeto. 

1*Jean‑Pierre Abraham, Armen, Éditions du Seuil, 1967
2*Jonathan Crary, 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep, Verso, 2013

Learning with ghosts

Learning with Ghosts um projeto de pesquisa do arquitecto Jacques-Marie Ligot e da artista Lucille Leger. Como certas arquitecturas reflectem modos de existência, dinâmicas de poder, organização do espaço e dos corpos? O fantasma é uma entidade activa, mas só se materializa por meios indirectos. A dupla propõe-se a usar este conceito para questionar a agência dos espaços vivenciados através dos afectos.



O Periple Duet é um programa de residências em movimento, no âmbito do programa europeu LINA, que convoca artistas emergentes a mergulhar num exercício de observação, criando um itinerário e um tema que una a cidade onde vivem a Lisboa. Nesta série de travelogues, lançada em 2023, artistas embarcam numa viagem que serve de base a uma reflexão sobre arquitectura e paisagem, abordando as noções de fronteira, fluidez, deslocação e património.